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18/02/2022

O DIFAL e a garantia da anterioridade

18/02/2022

Fevereiro de 2022, mais de trinta anos passados da promulgação da Constituição Federal de 1988, e a controvérsia jurídica em matéria tributária que está na pauta do dia diz respeito ao princípio da anterioridade – garantia das mais básicas dos contribuintes. Qual o caso? Recorre-se a uma breve digressão para explicá-lo.

O Diferencial de Alíquotas do ICMS, cuja competência para sua instituição pelos Estados e pelo Distrito Federal foi definida na Constituição a partir da Emenda Constitucional nº 87/2015, havia sido “regulamentado”, pelos Entes da Federação, mediante Convênio – especificamente o Convênio ICMS 93/2015, do CONFAZ. Com base nessa norma, as Unidades da Federação editaram suas leis internas e passaram a exigir o tributo. Os contribuintes, então, foram ao Judiciário argumentando que, nas vendas interestaduais de mercadorias a destinatários finais não contribuintes do ICMS, havia uma nova relação jurídico-tributária (entre Fisco do Estado de destino e vendedor do Estado de origem), a qual exigiria, obrigatoriamente, uma lei complementar disciplinando suas normas gerais – como determina o art. 146 da CF/88.

O Supremo Tribunal Federal, no ano de 2021, decidiu o tema na ADI nº 5.469/DF e no RE nº 1.287.019/DF (Tema 1.093), reconhecendo a inconstitucionalidade da exigência do DIFAL sem que houvesse lei complementar regulando a matéria e modulando os efeitos da decisão para que ela só passasse a ter eficácia a partir de 1º/01/2022, exceto em relação àqueles que já possuíssem ação quando do julgamento – para quem a decisão do STF seria eficaz desde logo.

Chega, assim, o dia 1º/01/2022 e não havia sido editada lei complementar sobre o tema. Esta somente foi publicada em 05/01/2022: Lei Complementar nº 190/2022. Eis que surge o (aparente) impasse: pode o DIFAL ser cobrado no ano de 2022, ou mesmo antes do curso de 90 dias contados da publicação da referida lei complementar?

Proponho esquecermos, por um instante, que a própria LC nº 190/2022 prevê, expressamente, que sua produção de efeitos deverá observar o art. 150, III, ‘c’, da CF/88 (dispositivos que estabelece a noventena e, igualmente, a observância concomitante da anterioridade de exercício prevista na anterior alínea ‘b’), e analisarmos o problema apenas sob a ótica da regra constitucional.

O argumento dos Estados é o de que suas leis internas já estavam editadas no ano de 2021 – tanto daqueles que mantiveram suas leis anteriores ao julgamento do Supremo, quanto daqueles que editaram novas leis ainda no exercício anterior – e de que, portanto, não haveria instituição de tributo novo ou aumento de carga tributária. A lei complementar apenas viria para dar eficácia às “adormecidas” (para não dizer, inconstitucionais) leis estaduais, de modo que o contribuinte já vislumbraria essa carga tributária e não estaria sendo “surpreendido” por nenhum aumento ou inovação. Logo, com base nesse racional, buscam os Fiscos estaduais exigir o tributo já neste exercício de 2022 – alguns, inclusive, a partir do mesmo dia em que publicada a LC nº 190/2022, sem respeitar sequer a noventena. No entanto, quer parecer que esse raciocínio é falacioso na sua raiz.

Imaginemos o percurso “natural” da instituição de um imposto como o ICMS, em temos normativos. É necessário que haja uma regra constitucional atribuindo competência ao Ente tributante (“A”), uma lei complementar definido os aspectos gerais desse tributo (“B”) e, finalmente, que haja uma lei estadual prevendo a sua cobrança (“C”). Para a instituição válida dessa relação jurídico-tributária, portanto, há três condições necessárias (A + B + C). Uma vez preenchidos esses três elementos, estará instituído, validamente, o novo imposto. E é a partir desse marco (instituição válida) que se contam os prazos da anterioridade (anual e nonagesimal). Portanto, a garantia do contribuinte é a de que, uma vez estabelecido um tributo validamente, ele terá – no caso do ICMS – assegurado o direito de não ter esse tributo exigido de si no mesmo ano e antes de decorridos noventa dias da sua instituição.

Examinemos, agora, a situação do DIFAL. No dia 1º/01/2022, só o que havia eram a regra constitucional atributiva de competência (“A”) e as leis estaduais[i] (“C”). Faltava, contudo, uma condição necessária ao estabelecimento de uma relação jurídico-tributária válida entre Fisco e contribuinte: a lei complementar (“B”). Como, então, já poderia estar em curso o “prazo” da anterioridade? Veja-se: em 1º/01/2022, era absolutamente autorizada a conclusão do contribuinte de que, não havendo lei complementar editada até aquele momento, uma relação tributária só poderia vir a ser estabelecida validamente (A + B + C) já durante o corrente exercício de 2022. A carga tributária do DIFAL nessa data era igual a zero. Não havia tributo (válido). Logo, pela regra da anterioridade, o DIFAL somente poderia ser cobrado a partir de exercício seguinte: 2023.

Sob tal perspectiva, o problema não é sequer a “ordem dos fatores”, isto é, se a lei estadual poderia ser editada antes de seu fundamento de validade – que é a lei complementar –, mas sim o fato de que não se vislumbra possível ou adequado considerar como marco definidor do atendimento da anterioridade a edição de uma lei (aqui refiro-me às leis estaduais) que não é capaz de estabelecer uma relação tributária válida.

A vigorar esse entendimento, tem-se a seguinte disparidade: enquanto na primeira hipótese referida (em que há prévia edição de lei complementar e subsequente edição de lei estadual), o contribuinte será cobrado apenas no exercício seguinte e pelo menos noventa dias depois de completo o esquema normativo para a instituição válida do tributo (A + B + C), na segunda hipótese, o contribuinte poderia ter o tributo exigido de si no mesmo dia em que completo esse esquema normativo. Basta, para isso, que a lei estadual tenha sido editada antes da lei complementar. A partir desse “marco”, deverá o contribuinte ficar atento porque, a qualquer momento, pode ser publicada a lei complementar, caso em que ele terá, imediatamente, de passar a recolher o tributo aos cofres públicos.

Evidentemente que esse segundo cenário não atende aos ideais de promoção da segurança jurídica e de proteção do direito fundamental à propriedade que são almejados com as garantias constitucionais da anterioridade. E é por isso que o argumento dos Fiscos estaduais – de fundo estritamente econômico – não deve prevalecer, pois está embasado em uma leitura deturpada do princípio da anterioridade.

Luis Carlos Fay Manfra

Advogado na Pimentel & Rohenkohl Advogados Associados

 

[i] Aliás, a própria constitucionalidade das leis estaduais editadas antes do julgamento ADI nº 5.469/DF e do RE nº 1.287.019/DF (Tema 1.093) pelo STF e antes da LC nº 190/2022 é, no mínimo, questionável.

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